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A Invenção das Asas e o Cristianismo Brasileiro

por Johnny Bernardo*

Escrito pela norte-americana Sue Monk Kidd, o livro A Invenção das Asas relata a história de uma jovem que, em meio a uma sociedade escravocrata, passou a defender o Abolicionismo e o fim dos maus tratos à mulher. A história, investigada por Kidd durante dois anos, se passa em 1803, em Charleston, Carolina do Sul, nos EUA. Neste ano, a pequena Sarah Grimké recebe de presente uma servente negra, chamada Hetty. Ambas tinham onze anos. Grimké, que desde os quatro anos de idade manifestava repudio a injustiça praticada contra negras, viu uma oportunidade de contextualizar sua aversão. Ao invés de escrava, Hetty passou a ser tratada como irmã, alguém da família. Foram trinta e cinco anos de convivência.

Sarah Grimké, ao desafiar sua própria família escravocrata, comum no sul dos Estados Unidos, entrou para a história como a “primeira abolicionista feminina dos EUA”. Escreveu panfletos em conjunto com sua irmã, Angelina, através dos quais condenava duramente à escravidão. Cento e cinquenta anos depois da abolição da escravidão nos EUA, ainda há resquícios do racismo predominante na época de Grimké. Sue Monk Kidd, branca, que mora na cidade de Marco Island, na Flórida, nos EUA, relata que cresceu em meio a um sul racista, de pré-direitos civis, e que demorou a erguer sua voz contra o racismo. “A opressão ainda é um fenômeno mais ou menos naturalizado nas sociedades ocidentais com histórico escravista”, pontua a escritora e sulista Sue Monk Kidd.

Que mentalidade predominava no Sul dos Estados Unidos, na primeira metade do século XIX? Historicamente favorável à escravidão, os sulistas eram em sua maioria cristãos protestantes, oriundos de famílias que imigraram da Europa para trabalhar na Costa Leste dos EUA. Segundo Hernâni Francisco da Silva, em O Protestantismo e a escravidão no Brasil, o “fundamentalismo das denominações protestantes dos EUA se transformou em terreno fértil para justificativas da escravidão, que buscavam embasamento doutrinário para apaziguar a consciência dos escravocratas do sul. Citando a história de Noé, identificavam a maldição de Cam, por ter surpreendido o patriarca nu e embriagado, como a maldição dos negros”. Interesses conflitantes.

No Brasil, segundo Silva, grupos protestantes do Sul dos EUA trouxeram ao País sua mensagem e concepção branca do Evangelho. “Os principais agentes da imigração norte-americana para o Brasil foram pastores protestantes do Sul dos EUA, a exemplo do Rev. B. Dunn, que via no Brasil uma nova Canaã, a terra prometida onde os confederados derrotados na Guerra de Secessão poderiam reconstruir suas vidas, seus lares e suas propriedades, incluindo a mão-de-obra escrava. Pelo menos cerca de 2000 a 3000 sulistas se deslocaram para São Paulo. O aceno de encontrar terras em abundância com mão-de-obra escrava certamente foi decisivo para que famílias inteiras, acostumadas a um estilo de vida escravista, se deslocassem do Sul dos EUA para o sudeste brasileiro [...] De uma maneira geral os protestantes no Brasil só tomaram uma posição contra a escravidão quando a abolição já era unanimidade”, pontua Hernâni Francisco da Silva.

Alcides Gussi, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), contraria alguns historiadores ao declarar que apenas quatro famílias protestantes possuíam um total de 66 escravos entre1868 e 1875. Hélio de Oliveira, em A Igreja Presbiteriana do Brasil e a Escravidão (Universidade Mackenzie), declara que, embora tímida, “a participação dos presbiterianos no processo abolicionista brasileiro foi construtiva e a mais expressiva dentre todas as denominações protestantes em processo de implantação no país no período de 1870 e 1888”. Oliveira pontua: “a prioridade das missões presbiterianas instaladas no Brasil a partir de 1859 era o estabelecimento e o desenvolvimento da sua obra missionária. Temia-se que o envolvimento precoce com a questão abolicionista poderia colocar em risco o processo de implantação da igreja, uma vez que o catolicismo era a religião majoritária e detinha inquestionável influência política”.

O envolvimento de protestantes com a escravidão ocorreu de forma diferenciada, nem sempre compatível com o que alguns historiadores pontuam, como se subtende das declarações de Hélio de Oliveira e Alcides Gussi. Oliveira, citando Júlio Andrade e Émile Léonard, chega a declarar que dos onze prosélitos que a comunidade presbiteriana de São Paulo recebeu em 1879, havia cinco escravos. “… [eles] também forneciam às igrejas bom número de membros. Sobre onze prosélitos que a comunidade presbiteriana de São Paulo recebeu em 1879, contavam-se cinco escravos. Tratava-se, o mais das vezes, de criados domésticos que adotavam a religião de sua patroa; mas outras vezes de escolha inteiramente livre, que era objeto de longas oposições; é assim que uma das negras de 1789, Felismena, precisou esperar quatro anos a permissão de seu senhor”.

De fato houve certa conivência ou resguardo de alguns grupos protestantes oriundos do Sul dos EUA, mas limitava-se a pequenos núcleos familiares, ao uso de escravos em trabalhos do lar, mas de forma diferente da usada por católicos – a exemplo da Ordem de São Bento que utilizava escravos em uma fazenda no ABC paulista. Do lado protestante havia movimentos localizados, de fundamentalistas, que interpretavam o Evangelho à sua maneira. Eram grupos isolados. Na segunda metade do século XX, mais precisamente em 1964, movimentos liderados por cristãos clamavam por uma resposta à “ameaça comunista”. Denominada de Marcha da Família com Deus pela Liberdade (MFDL), o movimento resultou em mais de vinte anos de opressão militar, privação de direitos, terrorismo e torturas. Reeditada de forma pífia no dia 22 de março, a MFDL reuniu apenas mil manifestantes em São Paulo e foi marcada por exemplos de extremismo religioso, de conivência com as mortes praticadas pelos militares. Igualmente há grupos evangélicos extremistas, localizados, que recorrem a expressões chulas, ao apoio de líderes e movimentos cuja moral é questionável. É um grupo isolado, contrário a maioria. Ponto!

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* é jornalista, pesquisador da religiosidade brasileira e das relações entre religião e sociedade, colunista do Gnotícias e do Núcleo Apologético de Pesquisas e Ensino Cristão (NAPEC)

Contato: pesquisasreligiosas@gmail.com