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Os limites entre a fé e a medicina

por Johnny Bernardo*

Na década de 1890, segundo Aldrin Moura de Figueiredo (A Cidade dos Encantos, 2009), para cada médico que clinicava nos hospitais e consultórios de Belém do Pará, cinco pajés atendiam em suas casas e eram tão importantes quanto os médicos. Nesse momento, explica Figueiredo, a medicina não estava plenamente institucionalizada na Região Norte, não havia associações médicas, faculdades de medicina. Os médicos se formavam na Bahia, no Rio de Janeiro ou no exterior e, muitas vezes, por lá ficavam. A pajelança, na Amazônia, era ao mesmo tempo religião e medicina, tinha um cunho espiritual e outro social.

O quadro apresentado por Figueiredo é passível de compreensão dada à ausência de especialidades médicas na Região Norte, mas isso era em 1890. Atualmente, apesar da média de médicos por mil habitantes ainda ser inferior em relação às demais regiões do Brasil – segundo uma pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e divulgada em 2012, enquanto a média brasileira de médicos por mil habitantes fica em 3,1, no Norte o número corresponde a 1,9 -, a saúde gratuita e complementar está presente em praticamente todas as cidades e vilarejos do Brasil, embora com algumas dificuldades, como a falta de investimento.

Neste contexto, as igrejas neopentecostais e grupos espiritualistas – como as sessões de cirurgias “espirituais” realizadas por médiuns como o “João de Deus”, em Abadiânia, Goiás, e que, segundo ele, semanalmente reúne cerca de 3.000 pessoas– crescem na medida em que a confiança na saúde pública e universal diminui. Ao mesmo tempo, a crendice popular ganha cada vez mais espaço nas grandes cidades, apresentando formas não tradicionais de tratamento de problemas físicos e psicológicos. Não somente em países historicamente considerados “atrasados” – pela ausência de condições mínimas de sobrevivência e, ao mesmo tempo, caracterizados por um forte apelo religioso -, também nos países desenvolvidos à busca pela espiritualidade cresce na contramão dos avanços médicos e científicos. Os EUA são um exemplo.

As igrejas neopentecostais souberam absolver a crendice popular e usá-la em sua guerra contra as enfermidades, atribuindo ao demônio a principal razão da existência dos males que afligem a humanidade. Ao remasterizar – ou adaptar – aspectos da crendice popular as neopentecostais criaram um mecanismo de atração do público com promessas de cura para doenças ou problemas simples que atingem seus seguidores. Ao atribuir às forças do mal a existência das doenças, a Igreja Universal do Reino de Deus e a Mundial do Poder de Deus, por exemplo, retira da medicina sua prerrogativa original de auxiliadora no tratamento e prevenção de enfermidades.

É a partir daí que começa o conflito entre a fé e a medicina. Se as doenças são de origem espiritual, das forças do mal, então o tratamento também tem de ser espiritual. A medicina, neste contexto, passa a assumir uma posição secundária. Citando o livro We Let Our Son Die (Deixamos Nosso Filho Morrer), o pesquisador Paulo Romeiro (Super Crentes, 1993, Mundo Cristão, págs. 34 – 36) cita algumas tragédias decorrentes do mau uso da fé. Publicado em 1980 pela Harvest House, We Let Our Son Die relata o drama vivido por Wesley Parker, diabético, e que dependia de insulina para sobreviver. Segundo Romeiro, depois de receber oração para ser curado, seus pais não permitiram mais que tomasse a insulina, o que provocou a sua morte em 23 de agosto de 1973.

Ex-batista, Hobatt Freeman começou uma pequena igreja em Winona Lake, Indiana, em 1963. Em 1966, segundo Romeiro, Winona recebeu o “batismo com o Espirito Santo”, o que o afastou muito de sua formação batista. A partir de 1978, Freeman começou a chamar a atenção da mídia devido a morte de crianças de sua igreja que foram proibidas de receber tratamento médico.

Cura-te a ti mesmo

Mesmo atribuindo às forças do mal a origem das doenças e insistirem na cura pela fé, lideres de igrejas neopentecostais do Brasil e dos EUA constantemente recorrem à medicina em busca de tratamento para suas doenças e moléstias. Em dezembro de 2011 o líder e fundador da Igreja Mundial do Poder de Deus, Valdomiro Santiago, procurou um hospital para fazer uma cirurgia do joelho, segundo O Globo.



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* é jornalista, pesquisador da religiosidade brasileira e das relações entre religião e sociedade, colunista do Gnotícias e do Núcleo Apologético de Pesquisas e Ensino Cristão (NAPEC)

Contato: pesquisasreligiosas@gmail.com